O
Blog deseja saber seu nome completo e que fale um pouco sobre sua família,
características do seu país e do local em que você estava morando antes de vir
para o Brasil.
Meu nome é Inácio
Márcio de Jesus Fernando Jaquete, africano e de nacionalidade moçambicana.
Moçambique é um país multicultural e por conta disso, tem sido conhecido por “mosaico cultural”. Está localizado no sudeste do
continente africano, banhado pelo oceano Índico. Ex-colônia portuguesa, tem
como língua oficial portuguesa, para além dessa são faladas mais de 20 línguas
locais e mais de 50 dialetos. Politicamente afirma-se como país democrático e
multipartidário, cujo governo é dirigido pelo Partido FRELIMO (Frente de
libertação de Moçambique) que está no poder desde a independência conquistada à
25 de junho 1975. Em termos de divisões administrativas, o país conta por 11
províncias (Estados) distribuídos em três regiões, Norte, Centro e Sul.
A sociedade Moçambicana
está organizada em dois principais grupos: Matrilinear, compreendem toda região
norte do país, nessas famílias, ou linhagem a descendência é contada em linha
materna. E patrilinear a região centro e sul do país nessas famílias, ou
linhagem a descendência é contada em linha paterna.
Sou da região centro do
país, província de Manica distrito de Gondola. Venho de uma vila rural, de uma
família de baixa renda e camponesa. Na vila e na comunidade do bairro Mucéssua,
nasci e cresci numa constante relação coletiva, alicerçada por uma educação
familiar e comunitária, seriamente comprometida com a transmissão de valores
éticos e morais compartilhados pela comunidade: o respeito pelos mais velhos,
respeito pela dignidade humana, respeito pelas tradições da família e da
comunidade, respeito pela ancestralidade e principalmente pelos anciãos,
aqueles que no continente africano são as nossas verdadeiras bibliotecas vivas
(Hampátê Bâ, 1982), pois nas suas memórias estão acomodadas o tesouro das
tradições africanas.
Para além desses
ensinamentos, adiciona-se uma questão muito fundamental, a honestidade e a gosto
pelo trabalho, que sustenta a nossa vida, a agricultura familiar. Sempre fui
encorajado a trabalhar em campos de produção, pois é de lá onde a minha família
e a comunidade em geral consegue seus sustentos. E era muito divertido e
interessante, pois as atividades no campo de produção eram sempre realizadas
coletivamente no meio de conversas agradáveis, contos populares, provérbios,
canções, que tornavam aqueles momentos não apenas de trabalho, mas momentos de
muita aprendizagem. Saudades...
O
Blog deseja saber por que decidiu concorrer uma vaga no Mestrado (informar o
nome do Programa) e também seu tema de estudo e quem está te orientando.
Então, essa questão me
lembra, o que meu pai constantemente dizia-me e a todos meus irmãos, “O melhor
amuleto da vida, você encontra na escola”, ele falava isso frequentemente, como
uma forma de nos passar a experiência pessoal por ele vivido. Ele, teve a
oportunidade de estudar no período colonial, e sempre compartilhou as vantagens
que tirou naquele processo. De tudo ele faz para que eu e o meus 7 irmãos tivéssemos
a oportunidade de no mínimo concluir o nível médio (12ª classe), em casa
poderia faltar até comida, mas nunca um caderno e lápis ou a caneta.
Eu tenho graduação em
Ensino de História com habilitações em Geografia pela Universidade Pedagógica
de Moçambique. Antes de concluir a minha graduação, mesmo consciente das
dificuldades financeiras da minha família eu almejava de alguma forma fazer o
mestrado, mas só poderia ser por meio de Bolsa de Estudo.
Em 2019 tive a
oportunidade de conhecer a UNESPAR por meio de um amigo, que compartilhou o
edital do processo seletivo do Programa de Pós-Graduação de História Pública, que
tinha duas vagas reservadas para estrangeiro. Era a oportunidade que tanto
queria e procurava. Me inscrevi e participei de todo o processo seletivo, o
Programa concedeu-me a oportunidade de realizar esse sonho.
Esse sonho vem sendo
realizado e com certeza que terá um troféu que é a pesquisa que estou
desenvolvendo sob orientação da Professora doutora Cyntia Simioni França,
Intitulada: Partilha de Memórias e
Narrativas dos mestres Moçambicanos na interface com as pinturas rupestres de
Chinhamapere. Neste estudo, dialogamos com as comunidades que vivem nas
mediações das pinturas rupestres. Buscamos compreender os sentidos e
significados que os mestres anciãos e anciãs atribuem às pinturas rupestres
enquanto um patrimônio cultural, pois a montanha está intimamente relacionada a
ancestralidade da comunidade e no mesmo local são realizados várias cerimonias
rituais como pedido de benção para chuva, proteção social e o bem-estar
comunitário.
O
Blog deseja saber o que o Mestrado mudou sua vida.
Olha, o mestrado
acadêmico, mudou muita coisa, principalmente pelo fato de ser fora do meu país,
em uma outra realidade social. Mudou a minha forma de olhar e ler o mundo,
agreguei vários aspectos que acho que só seriam possíveis fora do meu país.
Brasil e Moçambique são países que por questões históricas, associados primeiro
a questão de tráfico dos escravizados e posteriormente, com a questão da
colonização, compartilham de várias questões socioculturais, mas ao mesmo tempo,
temos enfrentado alguns problemas que são bem distintos, como por exemplo, o
racismo, as lutas dos povos afrodescendentes são algumas das questões que não
são pautas no meu país, estar aqui, despertou-me atenção a necessidade de
resistência e o combate da colonialidade prevalecente nos nossos dias.
Tenho falado que o
Brasil é minha segunda casa, pois sinto que renasci nesse país. Só aqui no
Brasil que comecei a sentir a necessidade de pensar e repensar sobre o fato de
eu ter a pele mais escura “negro enquanto raça”, os vários estereótipos criados
sobre o continente e os povos africanos e principalmente, nos que fomos
identificados como infracionais, inferiores, inumanos ou menos humanos só pela
cor da pele.
Esses enfrentamentos
que tenho vivido por aqui e em conjugação com vários autores e pensadores
africanos e decoloniais, têm me dado a dura missão de dormir pensando no
continente africano e felizmente todos os dias acordo incorporado nele, a cada
dia cai um pedaço da máscara branca a que nos é obrigado a usar pela hegemônica
Europa que vem cultivando a ideia de modelo único para todo mundo, por exemplo,
a ideias de uma única cultura, únicas línguas e assim vai, nos fazendo
acreditar na falsa ideia de que quanto
mais aprendemos e assimilamos as culturas europeias mais nos sentiremos
incorporados, isto é, quanto mais formos dominados pelas culturas europeias
mais civilizados ou modernos seremos.
A maior mudança foi
esse trampolim, que dei para fora dessa emboscada, a cada dia me sinto mais
africano, me reconecto com as minhas raízes, a minha ancestralidade, eu tenho
cada vez mais orgulhou do que sou com as minhas diferenças e singularidades, aliás,
eu acho que a diferença é a coisa mais bela que existe na natureza. Há um provérbio
africano que diz o seguinte: “Quando
o rio esquece onde nasce, ele seca e morre”. E na medida em que me
reconectar as minhas origens, as minhas identidades enquanto africano e
moçambicano, ao mesmo tempo, sentem que estou resistindo e combatendo a morte
existencial, o que Frantz Fanon (1952) no seu livro Pele negra, Máscaras
Brancas preferiu chamar de “desvio existencial”.
O
Blog deseja saber nesse período em que está morando no Brasil, o que você vê de
aspectos positivos aqui e se desejar responder, o que você vê de aspectos
negativos.
Nesse pouco tempo que
tenho contato com o Brasil, percebi com muita facilidade que existem vários Brasis,
acho que isso não é novidade para muitos. E essa é a potencialidade do Brasil,
os vários Brasis nos dão a oportunidade de aprender com os outros, com aquele
que achamos que é diferente, que as diferenças não sejam motivos para a
segregação, discriminação, subalternização, exclusão ou apagamento de alguns e
supervalorização dos outros. É claro que é um fenômeno histórico, mas se houver
vontade não de um pequeno grupo mas de todos e todas isso pode mudar e
melhorar.
Em Moçambique existe um
conceito que é usado para fortalecer as nossas relações enquanto um povo
bastante diversificado culturalmente, fala-se com frequência a “moçambicanidade”
esse conceito é usado para nos auto afirmarmos, mantermo-nos unidos e não permitir
que as diferenças que caracterizam as sociedades moçambicanas nos separem. Essa
questão tem me provocado muitas vezes a pensar na relação que tem vindo a ser estabelecido
entre os brasileiros considerados nativos “o
povo indígena” e os brasileiros que não se enquadram nessa denominação. E entendo,
numa visão muito pessoal que é uma questão que carece de um repensar.
Antes de minha chegada
nesse país, eu tinha mínimas noções do que era Brasil, o que absolutamente não
sabia, é que existia essa diferenciação tão forte e muito visível entre os
povos nativos (indígenas) e os que
não se identificam como povo indígena.
E fico pensando, se por um lado temos o “povo
indígena” e por outo lado o que temos?
O
Blog deseja saber o que você sente mais falta de seu país, nesse período no
Brasil.
Aqui no Brasil,
sinto-me como se estivesse em casa, tive a sorte de ser recebido e acolhido por
pessoas muito legais, a hospitalidade superou as expectativas. Aproveito essa
brecha para agradecer a minha orientadora professora Cyntia, que tem sido para
mim, mais do que uma orientadora, a Universidade e ao Programa de Pós-graduação
de História Pública pela confiança e pela oportunidade e a todos aqueles (as)
que as considero amigos (as) e consideram amigo, por todo apoio e por me fazer
sentir em casa.
Então o que sinto falta
e saudades, é a minha família, a minha comunidade, com quem partilhei toda a
minha infância e uma parte da minha vida adulta, também sinto falta e saudades
das comidas típicas, (Xima acompanhado por molho de tomate e peixe frito...)
O
Blog deseja que você deixe uma mensagem a nossos leitores e ao seu povo de
Moçambique.
Antes de responder essa
questão, quero agradecer o Blog pelo convite e pela oportunidade que me
proporcionou para compartilhar uma parte da minha vida pessoal acadêmica com os
demais leitores. A única mensagem que deixo para os leitores é mesmo de agradecimento
e um convite. Agradeço de forma mais abrangente sem exceção, pelo acolhimento,
e por me terem ajudado a me auto reconhecer, hoje me sinto mais africano do que
nunca, graças ao intercâmbio que tenho estabelecido com vocês. E faço o convite
para quem tiver a oportunidade e condições de experimentar este deslocamento,
vale a pena, a gente aprende bastante com os outros que vivem realidades
diferentes a que estamos acostumados.
Aos meus conterrâneos moçambicanos, vai a minha gratidão por terem me ajudado principalmente na minha educação familiar e comunitária, pois hoje carrego valores morais e éticos, cuja escola foi a comunidade, foram ensinamentos tão humanizados que transcendem as fronteiras. Hoje os mesmos, permitem-me conviver com diferentes pessoas sem muitas dificuldades apesar das diferenças socioculturais que nos caracterizam. E desejo que muitos outros tenham uma oportunidade igual ou similar à que tive, pois é um caminho enriquecedor e transformador.
Muito interessante!
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