quarta-feira, 15 de março de 2023

O BLOG DO MAYBUK ENTREVISTA O MESTRANDO DA UNESPAR QUE VEIO DE MOÇAMBIQUE



 Inácio ao lado de sua orientadora professora doutora Cyntia Simioni França

O Editor do Blog do Maybuk - professor Sérgio Luiz Maybuk frequentemente almoça na Cantina da Unespar campus de Campo Mourão. E dentre os/as frequentadores/as frequentemente está por lá o mestrando Inácio que veio de Moçambique. Ele é inteligente, simpático e de conversa agradável.

Numa dessas prosas, ele aceitou responder por escrito, algumas questões para o Blog. O Editor do Blog tem uma preocupação de sempre tratar muito bem que vem de outro país, pois é neto de poloneses e italianos que por volta do ano de 1.900, chegaram no país fugindo da fome e se estabeleceram por aqui.

Na sequência segue a entrevista:

O Blog deseja saber seu nome completo e que fale um pouco sobre sua família, características do seu país e do local em que você estava morando antes de vir para o Brasil.

Meu nome é Inácio Márcio de Jesus Fernando Jaquete, africano e de nacionalidade moçambicana. Moçambique é um país multicultural e por conta disso, tem sido conhecido por “mosaico cultural”. Está localizado no sudeste do continente africano, banhado pelo oceano Índico. Ex-colônia portuguesa, tem como língua oficial portuguesa, para além dessa são faladas mais de 20 línguas locais e mais de 50 dialetos. Politicamente afirma-se como país democrático e multipartidário, cujo governo é dirigido pelo Partido FRELIMO (Frente de libertação de Moçambique) que está no poder desde a independência conquistada à 25 de junho 1975. Em termos de divisões administrativas, o país conta por 11 províncias (Estados) distribuídos em três regiões, Norte, Centro e Sul.

A sociedade Moçambicana está organizada em dois principais grupos: Matrilinear, compreendem toda região norte do país, nessas famílias, ou linhagem a descendência é contada em linha materna. E patrilinear a região centro e sul do país nessas famílias, ou linhagem a descendência é contada em linha paterna.

Sou da região centro do país, província de Manica distrito de Gondola. Venho de uma vila rural, de uma família de baixa renda e camponesa. Na vila e na comunidade do bairro Mucéssua, nasci e cresci numa constante relação coletiva, alicerçada por uma educação familiar e comunitária, seriamente comprometida com a transmissão de valores éticos e morais compartilhados pela comunidade: o respeito pelos mais velhos, respeito pela dignidade humana, respeito pelas tradições da família e da comunidade, respeito pela ancestralidade e principalmente pelos anciãos, aqueles que no continente africano são as nossas verdadeiras bibliotecas vivas (Hampátê Bâ, 1982), pois nas suas memórias estão acomodadas o tesouro das tradições africanas.

Para além desses ensinamentos, adiciona-se uma questão muito fundamental, a honestidade e a gosto pelo trabalho, que sustenta a nossa vida, a agricultura familiar. Sempre fui encorajado a trabalhar em campos de produção, pois é de lá onde a minha família e a comunidade em geral consegue seus sustentos. E era muito divertido e interessante, pois as atividades no campo de produção eram sempre realizadas coletivamente no meio de conversas agradáveis, contos populares, provérbios, canções, que tornavam aqueles momentos não apenas de trabalho, mas momentos de muita aprendizagem. Saudades...

O Blog deseja saber por que decidiu concorrer uma vaga no Mestrado (informar o nome do Programa) e também seu tema de estudo e quem está te orientando.

Então, essa questão me lembra, o que meu pai constantemente dizia-me e a todos meus irmãos, “O melhor amuleto da vida, você encontra na escola”, ele falava isso frequentemente, como uma forma de nos passar a experiência pessoal por ele vivido. Ele, teve a oportunidade de estudar no período colonial, e sempre compartilhou as vantagens que tirou naquele processo. De tudo ele faz para que eu e o meus 7 irmãos tivéssemos a oportunidade de no mínimo concluir o nível médio (12ª classe), em casa poderia faltar até comida, mas nunca um caderno e lápis ou a caneta.

Eu tenho graduação em Ensino de História com habilitações em Geografia pela Universidade Pedagógica de Moçambique. Antes de concluir a minha graduação, mesmo consciente das dificuldades financeiras da minha família eu almejava de alguma forma fazer o mestrado, mas só poderia ser por meio de Bolsa de Estudo.

Em 2019 tive a oportunidade de conhecer a UNESPAR por meio de um amigo, que compartilhou o edital do processo seletivo do Programa de Pós-Graduação de História Pública, que tinha duas vagas reservadas para estrangeiro. Era a oportunidade que tanto queria e procurava. Me inscrevi e participei de todo o processo seletivo, o Programa concedeu-me a oportunidade de realizar esse sonho.

Esse sonho vem sendo realizado e com certeza que terá um troféu que é a pesquisa que estou desenvolvendo sob orientação da Professora doutora Cyntia Simioni França, Intitulada: Partilha de Memórias e Narrativas dos mestres Moçambicanos na interface com as pinturas rupestres de Chinhamapere. Neste estudo, dialogamos com as comunidades que vivem nas mediações das pinturas rupestres. Buscamos compreender os sentidos e significados que os mestres anciãos e anciãs atribuem às pinturas rupestres enquanto um patrimônio cultural, pois a montanha está intimamente relacionada a ancestralidade da comunidade e no mesmo local são realizados várias cerimonias rituais como pedido de benção para chuva, proteção social e o bem-estar comunitário.    

 

O Blog deseja saber o que o Mestrado mudou sua vida.

Olha, o mestrado acadêmico, mudou muita coisa, principalmente pelo fato de ser fora do meu país, em uma outra realidade social. Mudou a minha forma de olhar e ler o mundo, agreguei vários aspectos que acho que só seriam possíveis fora do meu país. Brasil e Moçambique são países que por questões históricas, associados primeiro a questão de tráfico dos escravizados e posteriormente, com a questão da colonização, compartilham de várias questões socioculturais, mas ao mesmo tempo, temos enfrentado alguns problemas que são bem distintos, como por exemplo, o racismo, as lutas dos povos afrodescendentes são algumas das questões que não são pautas no meu país, estar aqui, despertou-me atenção a necessidade de resistência e o combate da colonialidade prevalecente nos nossos dias.

Tenho falado que o Brasil é minha segunda casa, pois sinto que renasci nesse país. Só aqui no Brasil que comecei a sentir a necessidade de pensar e repensar sobre o fato de eu ter a pele mais escura “negro enquanto raça”, os vários estereótipos criados sobre o continente e os povos africanos e principalmente, nos que fomos identificados como infracionais, inferiores, inumanos ou menos humanos só pela cor da pele.

Esses enfrentamentos que tenho vivido por aqui e em conjugação com vários autores e pensadores africanos e decoloniais, têm me dado a dura missão de dormir pensando no continente africano e felizmente todos os dias acordo incorporado nele, a cada dia cai um pedaço da máscara branca a que nos é obrigado a usar pela hegemônica Europa que vem cultivando a ideia de modelo único para todo mundo, por exemplo, a ideias de uma única cultura, únicas línguas e assim vai, nos fazendo acreditar na falsa ideia de  que quanto mais aprendemos e assimilamos as culturas europeias mais nos sentiremos incorporados, isto é, quanto mais formos dominados pelas culturas europeias mais civilizados ou modernos seremos.

A maior mudança foi esse trampolim, que dei para fora dessa emboscada, a cada dia me sinto mais africano, me reconecto com as minhas raízes, a minha ancestralidade, eu tenho cada vez mais orgulhou do que sou com as minhas diferenças e singularidades, aliás, eu acho que a diferença é a coisa mais bela que existe na natureza. Há um provérbio africano que diz o seguinte: “Quando o rio esquece onde nasce, ele seca e morre”. E na medida em que me reconectar as minhas origens, as minhas identidades enquanto africano e moçambicano, ao mesmo tempo, sentem que estou resistindo e combatendo a morte existencial, o que Frantz Fanon (1952) no seu livro Pele negra, Máscaras Brancas preferiu chamar de “desvio existencial”.

 

O Blog deseja saber nesse período em que está morando no Brasil, o que você vê de aspectos positivos aqui e se desejar responder, o que você vê de aspectos negativos.

Nesse pouco tempo que tenho contato com o Brasil, percebi com muita facilidade que existem vários Brasis, acho que isso não é novidade para muitos. E essa é a potencialidade do Brasil, os vários Brasis nos dão a oportunidade de aprender com os outros, com aquele que achamos que é diferente, que as diferenças não sejam motivos para a segregação, discriminação, subalternização, exclusão ou apagamento de alguns e supervalorização dos outros. É claro que é um fenômeno histórico, mas se houver vontade não de um pequeno grupo mas de todos e todas isso pode mudar e melhorar.

Em Moçambique existe um conceito que é usado para fortalecer as nossas relações enquanto um povo bastante diversificado culturalmente, fala-se com frequência a “moçambicanidade” esse conceito é usado para nos auto afirmarmos, mantermo-nos unidos e não permitir que as diferenças que caracterizam as sociedades moçambicanas nos separem. Essa questão tem me provocado muitas vezes a pensar na relação que tem vindo a ser estabelecido entre os brasileiros considerados nativos “o povo indígena” e os brasileiros que não se enquadram nessa denominação. E entendo, numa visão muito pessoal que é uma questão que carece de um repensar.

Antes de minha chegada nesse país, eu tinha mínimas noções do que era Brasil, o que absolutamente não sabia, é que existia essa diferenciação tão forte e muito visível entre os povos nativos (indígenas) e os que não se identificam como povo indígena. E fico pensando, se por um lado temos o “povo indígena” e por outo lado o que temos?

 

O Blog deseja saber o que você sente mais falta de seu país, nesse período no Brasil.

Aqui no Brasil, sinto-me como se estivesse em casa, tive a sorte de ser recebido e acolhido por pessoas muito legais, a hospitalidade superou as expectativas. Aproveito essa brecha para agradecer a minha orientadora professora Cyntia, que tem sido para mim, mais do que uma orientadora, a Universidade e ao Programa de Pós-graduação de História Pública pela confiança e pela oportunidade e a todos aqueles (as) que as considero amigos (as) e consideram amigo, por todo apoio e por me fazer sentir em casa.

Então o que sinto falta e saudades, é a minha família, a minha comunidade, com quem partilhei toda a minha infância e uma parte da minha vida adulta, também sinto falta e saudades das comidas típicas, (Xima acompanhado por molho de tomate e peixe frito...)

 

O Blog deseja que você deixe uma mensagem a nossos leitores e ao seu povo de Moçambique.

Antes de responder essa questão, quero agradecer o Blog pelo convite e pela oportunidade que me proporcionou para compartilhar uma parte da minha vida pessoal acadêmica com os demais leitores. A única mensagem que deixo para os leitores é mesmo de agradecimento e um convite. Agradeço de forma mais abrangente sem exceção, pelo acolhimento, e por me terem ajudado a me auto reconhecer, hoje me sinto mais africano do que nunca, graças ao intercâmbio que tenho estabelecido com vocês. E faço o convite para quem tiver a oportunidade e condições de experimentar este deslocamento, vale a pena, a gente aprende bastante com os outros que vivem realidades diferentes a que estamos acostumados. 

Aos meus conterrâneos moçambicanos, vai a minha gratidão por terem me ajudado principalmente na minha educação familiar e comunitária, pois hoje carrego valores morais e éticos, cuja escola foi a comunidade, foram ensinamentos tão humanizados que transcendem as fronteiras. Hoje os mesmos, permitem-me conviver com diferentes pessoas sem muitas dificuldades apesar das diferenças socioculturais que nos caracterizam. E desejo que muitos outros tenham uma oportunidade igual ou similar à que tive, pois é um caminho enriquecedor e transformador.    

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