Era
uma vez um homem muito rude que perdeu a mãe aos quatro anos de idade e um
tempo depois foi criado pela madrasta.
Esse
mesmo homem, um gigante para trabalhar e que tinha um desejo enorme de vencer
na vida, também era muito vaidoso, alinhado e era engraçado, tinha umas tiradas
fabulosas, fazia rir, inclusive, em momentos de brabeza e das queixas, fazia
piada das próprias agruras da vida.
O
tal homem rude perdeu o emprego no dia que seu filho nasceu e imaginem o
impacto disso nele, na esposa e indiretamente no seu primogênito.
O
homem rude, trabalhador e piadista, foi motorista de caminhão, motorista de
táxi, dono de bar, sorveteria, roceiro,
morou em dezenas de casas alugadas, depois construiu uma linda e vendeu.
Construiu outra linda e vendeu e finalmente construiu outra linda e viveu até o
final de seus dias nela.
Certa
época sonhou em ir embora para a Rondônia. Lá seria o paraíso, o governo dava
40 alqueires de terra para quem fosse para lá. Falou, falou, mas não teve coragem de deixar o torrão
roncadorense.
Era
uma vez, o agora menino, que em certos momentos tremia de medo do pai rude,
nunca apanhou dele, mas as palavras duras penetraram fundo, fizeram alguns estragos
e as orelhas do pobrezinho como as de tantos outros daquela época, foram puxadas
várias vezes, literalmente. Quem conheceu o tamanho da mão do puxador pode ter
uma idéia, mas grande parte das vezes das puxadas, eram merecidas. Era a psicologia da época, “psicocinta”
ou “psicorelha”.
Esse
mesmo menino admirava o pai, adorava ouvir ele contar sobre o trabalho, sobre
certas demandas, alguns desentendimentos ocorridos em algum local. Esse pai
adorava argumentar, se tivesse tido chance poderia ter sido um advogado. O
menino bem pequeno adorava colocar o ouvido nas costas do pai que tinha a voz
potente, somente para sentir o vibrar quando ele falava. Coisas de criança, difícil
de entender.
O
menino quase enloquecia, nas raras vezes quando era convidado para ir junto no
caminhão, buscar carga de milho nos sítios da redondeza. O pai trabalhador se
preocupava com a segurança do menino e dificilmente o levava junto.
O
menino era absurdamente tímido e se transformava num tomate de vermelho,cada vez que a professora lhe
dirigia a palavra ou algum fato acontecia em outros locais, relacionados a ele,
tanto repreensões quanto elogios, o resultado era o mesmo.
O
pai com pouco estudo, mas muito bom de conta, sabia magistralmente fazer
a prova dos noves fora, pouca gente sabe hoje em dia, o filho sabe que é possível
saber com certeza se a conta está certa aplicando a dita cuja prova.
Esse
mesmo pai cobrava, por vezes com crueldade que o filho estudasse, fosse o
melhor da sala. Não bastava tirar nota boa, tinha que ser o “mior”. Não bastava
jogar bola, tinha que usar a “camisa 10”.
Não bastava ter a coragem de ir vender sorvete, tinha que ganhar bastante na
comissão. Era o jeitão dele de fazer seu filho crescer, poderia até estar
errado, mas a intenção era a melhor possível.
O
filho absurdamente tímido se atracou nos estudos, uma das poucas coisas que
sabia fazer direito. Acredita-se pelas boas línguas que nesse aspecto valeu a
pena. E o pai contribuiu nisso.
O
filho que morava em Roncador-Pr adorava quando em certas ocasiões, acordava
para ir à Campo Mourão-Pr com o pai, mãe e irmã, fazer compras. Comprar iogurte
e arroz caramelizado no então Supermercado Iguaçú (que depois virou Daimaru),
era o máximo para o menino. E as camisetas novas então? Adquiridas a duras
penas (hoje se sabe) era algo fantástico. O filho lembra de duas em duas
ocasiões diferentes, uma camiseta azul com um Mickey em relevo, parece que de
borracha pregado na frente e outra cor laranja, também com um relevo que não se
recorda de qual personagem. Pensem num polaquinho metido e orgulhoso com aquelas
camisetas.
O
filho NUNCA passou fome, mas as coisas eram difíceis. Pão com mortadela no
recreio era somente para os “riquinhos” da cidade. Tal filho, comia pão com
margarina, mas nunca faltou. O filho uma vez entrou para a tal “cruz vermelha”
no colégio Nossa Senhora das Graças, era para fiscalizar outros alunos e cuidar
para não corressem e não se machucassem. Imaginem a dureza da missão e tal
projeto não resistiu um mês, mas a mãe
do menino teve que costurar uma roupa toda branca e fazer um quepe com a cruz
vermelha. E o pai, certamente com o dinheiro curto, teve que rodar Campo Mourão
inteira para encontrar um sapato branco para uma criança de 8 anos. Que coisa
louca.
O
filho até os 12 anos adorava sair com o pai aos domingos e ir assistir futebol
no Estádio municipal ainda de terra na época. O filho lembra de tantas
partidas, lembra do tio Helio Smak, grande zagueiro fazendo um gol de empate
contra o time de Nova Cantu. Lembra de tantos gols do querido e talentoso João Calino,
parente do Padre Gaspar de Campo Mourão.
De
repente, o menino começa a ter vergonha do pai e de querer sair junto mais. O
menino por força do pai, depois de ter trabalhado vendendo alumínio que
encontrava nas ruas, para o seu Belarmino e vendido sorvete um ano, entrou aos
13 anos numa farmácia como balconista, depois estagiário do Banco do Brasil,
Coamo e então Fecilcam.
Dali
para frente conflitos começaram a
aparecer , o pai rude, bruto e turrão e o filho teimoso como uma mula, só
poderia dar errado. Muitos xingamentos e até interrupção de diálogo por um
tempo. O filho se pudesse apagaria de vez essa triste passagem, mas não é
possível, faz parte do pacote.
O
filho e o pai rude nunca se abraçaram, nunca se beijaram, era o jeito da
criação da época.
Aos
30 anos o filho ganhou um filho e consequentemente o pai agora, aos 57 anos
ganhou o primeiro o neto, que por circunstâncias da vida acabou morando com ele
até os 10 anos de idade. Portanto, nesse caso, naturalmente esse neto era um “filho
com açúcar”. Até parar de fumar o “velho” parou por causa do “fio”. Dizem as
más ou boas línguas, mas não contem para ninguém, o pai rude que nunca abraçou
o filho, rolava na grama com o netinho.
Depois
desse neto tudo mudou na relação entre aquele o pai rude e o filho teimoso. O
filho entendeu a dureza e a maravilha de se ter também um filho. O pai
provavelmente tentou corrigir coisas que entendeu que foram erradas no passado.
Alguém
já disse, só se aprende a ser filho quando se é pai e só se aprende a ser pai
quando se é avô. Não é totalmente correto, mas tem um pouco de verdade.
Depois
de umas terapias, depois de ver a convivência entre o seu filho e seu pai (neto
e avô). Depois de até ter proporcionado alguns momentos de orgulho para o
velho, a admiração do filho teimoso para com o pai rude só aumentou.
Nos
últimos 5 anos, por exemplo, ele inventou de promover em Campo Mourão, na
véspera do dia dos pais, um almoço na churrascaria somente entre os três
Maybuk. Julio, Sérgio Luiz e o Giordano Bruno. Lembranças maravilhosas, almoço
delicioso, a cerveja gelada, altos papos e as fotografias para colocar no
Facebook para todos e todas verem aquele trio feliz.
O
último foi em 2019. Em 2020 a pandemia não deixou. Mas os contatos e os altos
papos por telefone entre o filho teimoso e o pai rude só aumentavam. “Se cuide
aí velho, cuidado com o corona” ele dizia, porque tinha certeza absoluta, que
pela vitalidade do pai, embora com 79 anos, em pleno mês de setembro, que se ele
passasse pela pandemia chegaria tranquilamente aos 90 anos.
Mas
aí numa quinta feira de outubro,o filho recebe o telefonema da irmã mais velha,
pedindo para ir à Central Hospitalar receber o pai que vinha de ambulância com
os rins quase parados. Aí veio a lembrança de que o velho quase não tomava
água.
De
quinta à domingo, foram momentos emocionantes de uma relação bem restabelecida entre o filho e pai. Se antes não aconteceram
os abraços, naqueles quatro dias que não acabavam mais, as formas de total
carinho e atenção foram muitas.
O
filho (a filha fez a mesma coisa no plantão dela), conversou, chamou a enfermeira
quinhentas vezes, deu banho, sentiu o contato do rosto do pai, o toque nos
poucos cabelos cheios de sabonete, enxugou, deu comida na boca, riu das piadas
nas horas que não havia dor. Retirou os restinhos de pão de cima da camisa, o pai
ficava incomodado. Pense num homem vaidoso e preocupado com esses detalhes. Por
fim, ainda assistiram juntos, um jogo de
futebol naquele domingo à tarde.
Na
segunda-feira de manhã ele foi para UTI. Tranquilo, vai melhorar, irá talvez se
necessário, fazer hemodiálise.
Na
quarta-feira o filho se encontra com o pai na UTI. Dos 10 minutos de direito,
quase a metade para acordar o velho. Pense num sono pesado. Acordou, reconheceu
o filho apesar de 48 horas sem nenhum parente por perto (coisas da pandemia),
conversou, riu, disse que queria ir embora e o filho disse que ainda iria
demorar um pouco, mas que estavam cuidado bem dele. Quando a enfermeira “policial”,
avisa do fim da visita, o pai saiu com uma bem a cara dele. Sorrindo disse “Oh
enfermeira, fiquei sabendo que tão fazendo umas rezas prá mim morrer, mas eu
não vou não”. E o filho sarrista entrou no embalo e falou “pois é pai,
quebramos a cara, você não vai morrer”. O filho pegou nas mãos do pai e disse,
amanhã a Rosane sua filha vem lhe ver.
O
filho foi para casa, crente que, embora segundo o médico o estado era grave, que o pai sairia logo da UTI.
Na
sexta-feira, na visita da outra filha (a
que faltava ver) já não estava bem. No sábado, 5h40, em Campo Mourão, a mesma
cidade dos iogurtes e arroz caramelizados, ele se despediu do plano terreno e
está de olho nos filhos e netos de lá.
As
homenagens a ele, e a infinidade de carinho tão reconfortantes de parentes,
amigos e amigas, colegas e até de desconhecidos ao filho, filha, netos e a mãe foram e estão sendo fundamentais.
Na
quarta-feira, o filho teimoso estava passando camisas e camisetas, como gosta
de fazer. Umas mais novas, outra mais surradas que ele insiste em não
descartá-las e entre elas, aquela camisa pólo azul marinho. Epa, que camisa é essa?
Aí surgiram duas lembranças. A primeira que a camisa era do pai que tinha vindo
do hospital para lavar. A segunda, era que definitivamente ele já se foi e não
estava por aqui. Depois de passar a camisa com carinho, cheirar, beijar na
frente e na parte de trás, talvez imaginando que iria sentir o vibrar das
costas do pai, quando de criança, deixou lágrimas caírem e guardou no
guarda-roupas, como relíquia.
Maybuk que homenagem mais linda, que história encantadora! Fiquei emocionada!
ResponderExcluirMuito obrigado Aline.
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