FATOS E CONTRADIÇÕES - PARTE 2:
II-Há limites para a coalizão de governo?
Engana-se, porém, quem pensa que a porção do Brasil atrasado na coalizão do governo se manifesta apenas através das oligarquias ligadas ao latifúndio. O Brasil atrasado está também presente nas grandes metrópoles e com ele também o pretenso Brasil moderno faz alianças. Um desses episódios é a busca da aliança do PT com o prefeito de São Paulo Gilberto Kassab.
Kassab, criador do PSD, egresso do PFL e do DEM, já afirmou que não é nem de esquerda, nem de centro e nem de direita, é pragmático. Olha os seus interesses e o do seu partido recém-criado e se aproxima de quem lhe for mais útil. Kassab é da linhagem política pós-ditadura, ex-aliado de Maluf, acusado de enriquecimento ilícito quando foi secretário de Celso Pitta na prefeitura de São Paulo. O PT, por sua vez, surge na contramão do autoritarismo, na oposição à ditadura militar, fortemente ligado às lutas sociais pela redemocratização do país.
"Que cara de pau, hein! É um constrangimento para ele maior que para mim. Onde ele estava havia 32 anos? Eu estava na fundação do PT, em São Paulo". A afirmação é do deputado federal pelo PT do Paraná Dr. Rosinha, referindo-se a Gilberto Kassab, convidado para o 32º aniversário do PT.
A tentativa de aliança do PT com o PSD – racha do DEM – de Kassab, mais do que mirar as eleições de 2012, mira em 2014, as eleições presidenciais. “Claro que o PT não está conversando com Kassab sobre afinidades programáticas nem projetos para melhorar a vida de quem mora nesta cidade, nem mesmo está atrás dos votos dele, até porque o prefeito tem altíssimos índices de rejeição. Também não é por causa do tempo do PSD na televisão, que não passa de um minuto. Os olhos de Lula e Dilma miram não a eleição deste ano, mas a de 2014, tanto no plano federal como no estadual, em que o maior objetivo do PT é isolar o PSDB e, principalmente, José Serra, que levou Kassab para a prefeitura como vice em 2004”, afirma o experiente jornalista Ricardo Kotscho.
Foi exatamente a partir da análise anterior que José Serra anunciou que será candidato à prefeitura em São Paulo, abortando dessa forma a pretensa aliança do PT com Kassab/PSD. O prefeito de São Paulo nunca negou sua gratidão a José Serra que o catapultou na política ao sustentar e e defender o nome de Kassab, quando ainda estava no PFL, como vice-prefeito na chapa encabeçada pelo PSDB nas eleições municipais de 2004.
Independente do desfecho, fica evidente que cada vez mais o PT orienta suas alianças pela manutenção do poder e não necessariamente por um projeto de poder. A amostra dessa tendência fica clara nas concessões inéditas que o PT fará para a disputa municipal desse ano.
A respeito do aliancismo, pergunta editoral da Carta Maior “PT/Kassab: qual é o limite do 'ônibus' petista”? E responde: "Derrotar o PSDB em São Paulo é uma meta importante (...) O problema, de fato, não é tanto com quem se faz aliança, mas sim para onde aponta o processo. Ou seja, qual programa o PT propõe para a cidade – e por extensão para o país – no pós-crise do neoliberalismo? Como a natureza desse projeto será influenciada pela lotação do 'veículo' aliancista”?
Coalizão, governança e religião: a anulação do debate
A camisa de força imposta pelo modo aliancista de governar adotado pelo PT, se mostra ainda em outras temáticas, envolvendo ora setores da sociedade civil, ora temas sobretudo morais. Em comum, têm o fato de trazerem à tona a aliança entre o Brasil conservador e o Brasil moderno.
No dia 26 de janeiro, a presidente Dilma Roussef deslocou-se até o Fórum Social Temático, em Porto Alegre, para uma conversa com os movimentos sociais. Diante da pluralidade das organizações que se faziam presentes, Dilma reconheceu a necessidade de uma maior aproximação com os movimentos sociais. Agora, qual tipo e como se pode dar essa aproximação, é uma outra história. Afinal, quais seriam as dificuldades que o governo enfrenta diante dos apelos por uma democratização social, vivida no Brasil de nossos tempos? No cotidiano da política falta clareza sobre os rumos do governo, já que sua posição pragmática e eleitoreira não consegue romper com os velhos padrões que persistem em pautar o debate das questões atuais.
Um fato exemplar deste pragmatismo político deu-se no mesmo Fórum Social Temático, em que a presidente falou de diálogo com os movimentos sociais. Numa palestra durante o Fórum, o ministro Gilberto Carvalho afirmou que o Estado deveria disputar ideologicamente a nova classe média brasileira, que é refém dos setores conservadores: “Lembro aqui, sem nenhum preconceito, o papel da hegemonia das igrejas evangélicas, das seitas pentecostais, que são a grande presença para esse público que está emergindo”. Uma declaração suficiente para inflamar os ânimos de parte da base do governo Dilma. A sentença foi dura, pois custou uma retratação do ministro Gilberto Carvalho em visita ao Congresso, com pedido de desculpas e demais justificativas.
No entanto, ele não foi o único ministro a polemizar nessas últimas semanas. A polêmica mais aguda deu-se com a nomeação de Eleonora Menicucci para a Secretaria de Política para as Mulheres. A nova ministra, que historicamente possui uma forte atuação em prol da democracia, também como pesquisadora, professora e militante, sempre esteve aliada ao movimento feminista. Em sua posse, Eleonora Menicucci afirmou: “Não se pode aceitar que, ainda hoje, quando temos uma mulher no mais alto cargo do Executivo brasileiro, mulheres sejam vistas como meros objetos sexuais, que morram durante a gravidez, que tenham direitos reprodutivos e sexuais desrespeitados”.
Sua nomeação reacendeu o debate acerca do aborto, e representantes políticos e lideranças religiosas voltaram a se manifestar em tom nada conciliador com a presidente Dilma. O desconforto político instalou-se no Palácio do Planalto, demonstrando a fragilidade em se avançar em algumas políticas por conta da coalizão de forças bastante antagônicas em torno do governo. O ministro Gilberto Carvalho, na sua audiência no Congresso, além do pedido de desculpas, levou um recado da presidente Dilma em que esta afirma não ter intenção de tomar qualquer iniciativa para alterar a legislação sobre o aborto.
Além de uma questão de saúde pública, o aborto tornou-se também uma bandeira política para alguns religiosos. O tema já apareceu nas eleições presidenciais de 1989, entre Collor e Lula, em 2000, entre Paulo Maluf e Marta Suplicy quando disputaram a prefeitura de São Paulo e, por último, com Dilma e Serra na eleição presidencial de 2010. Porém, para a socióloga Fátima Jordão e a graduanda em ciências sociais pela USP, Paula Cabrini, “os lances do jogo eleitoral em 2010 não agregaram nem votos a candidatos, nem benefícios aos discursos conservadores – porque derrotados -, nem à sociedade em geral. A questão do aborto naquelas eleições presidenciais sinalizou a possibilidade de continuação e aprofundamento de um debate amplo e mais aberto”.
Para o movimento feminista, a nomeação da nova ministra Eleonara Menicucci de Oliveira sinaliza nessa direção e foi uma decisão acertada pelo governo de Dilma. Para Maria José Rosado, coordenadora da organização governamental Católicas pelo Direito de Decidir, “sabendo da trajetória e das posições políticas dela (Menicucci), o governo Dilma não iria convocá-la para, depois, cercear sua atuação”.
Entretanto, há que se medir qual a disposição do governo para enfrentar essa temática tão espinhosa e grave. Em reunião na ONU, o governo de Dilma Roussef foi cobrado por peritos que apontaram a falta de ação do Brasil diante da morte anual de 200.000 mulheres em decorrência dos abortos de risco. A ministra Eleonora Menicucci evitou tratar dessa questão durante essa reunião.
Desde a posse da ministra Eleonora Menicucci, isso ficou evidenciado. Ela esclareceu que seguiria as diretrizes do governo, embora tivesse sua posição. Não custou para que, mesmo assim, recebesse a pecha de “abortista”. Ainda, segundo o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), “o comportamento dessa ministra não é compatível com o comportamento de quem vai conduzir as políticas de um governo. As opiniões dela são contrárias às de governo”.
A CNBB, embora com pouco alarde, foi precisa no recado para a presidente Dilma. Em relação ao aborto, o presidente da entidade, dom Raymundo Damasceno Assis, disse que “é uma questão inegociável”. Ele reconheceu a legitimidade da presidente em escolher o seu ministério, mas disse que existem questões mais importantes para serem discutidas do que o aborto. Alguns bispos estão menos preocupados com a relação entre Igreja e Governo. Em 2010, por exemplo, o atual arcebispo de Campinas, dom Airton José dos Santos, quando ainda estava em Mogi das Cruzes, foi um dos responsáveis pela difusão do Apelo a Todos os Brasileiros e Brasileiras, um manifesto contrário ao voto em candidatos do PT.
Dessa vez, quem se pronunciou publicamente foi dom José Benedito Simão, presidente da Comissão pela Vida do Regional Sul 1 (São Paulo), dizendo que a nova ministra Eleonora Menicucci “é uma pessoa infeliz, mal-amada e irresponsável”, que adotou uma postura contra o povo e em favor da morte”, por defender o aborto. Ressaltou ainda o risco de se criar um confronto entre a Igreja e o Governo.
Nota-se o campo minado que o governo Dilma atravessa, quando se trata da discussão do aborto e da necessidade da constituição de uma política pública de saúde a esse respeito. Refém das alianças, pressionado pelos políticos e lideranças religiosas, não será pela lógica do pragmatismo que o governo conseguirá dar uma resposta.
Embora em menor intensidade, nas eleições municipais desse ano, não só o aborto como também os direitos dos homossexuais poderão aparecer novamente no cenário político. Em São Paulo, a polêmica em relação ao kit anti-homofobia poderá ser reavivada pelos adversários do ex-ministro Fernando Haddad, pré-candidato a prefeito da cidade. A esse respeito, o também pré-candidato Gabriel Chalita já deu uma dica, afirmando que o próximo prefeito precisará de valores cristãos para administrar a cidade. No Rio de Janeiro, o PSD, partido recentemente criado por Gilberto Kassab, já conta com um grande número de evangélicos levando à frente as bandeiras e convicções políticas de suas respectivas instituições religiosas.
O que está valendo é a política de resultados. Algo que o presidente nacional do PRB e integrante da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcos Pereira, diz ter aprendido de Lula. Certa vez, o ex-presidente Lula disse que para se liquidar um opositor, basta contar com três itens: muito dinheiro, um partido robusto e um grupo de comunicação forte. Uma receita infalível para políticos que transformam qualquer debate sério numa equação de quanto se perde ou quanto se ganha em votos.
Questão relacionada a esse debate diz respeito à presença das Igrejas no espaço público, notadamente da política. Partindo do pressuposto da autonomia entre religião e política, a questão nunca foi ou é a de que a religião deva se refugiar na sacristia. Historicamente, a Igreja católica, especificamente, mas agora também as evangélicas, sempre teve uma interface com o mundo da política. Não é isso que está em discussão. Trata-se antes de atentar para a qualidade de sua inserção, para o tipo de sociedade, como estruturas sociológicas, que defendem.
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